É comum encontrarmos imóveis rurais que indicam a confrontação com um córrego, riacho, rio, açude ou represa. Essa forma de descrever a confrontação é incorreta e imprecisa. Mais comum ainda é encontrar resistência, especialmente por parte de alguns profissionais (engenheiros, agrimensores etc), quando, nos procedimentos de retificação de área, solicitamos que o imóvel localizado na outra margem do rio ou córrego seja identificado, incluído como confrontante e apresentada a anuência de seu titular.
A resistência é sempre no sentido de que a confrontação é com o rio e não com o imóvel da margem oposta e que não há utilidade nessa anuência, pois não há cerca que possa ser movida, não havendo, portanto, possibilidade de invasão de área. Eu quase concordo com o segundo argumento, mas o fato é que essa confrontação possui consequências jurídicas, que veremos mais adiante. O primeiro argumento, contudo, não procede, em absoluto. Imóveis jamais confrontam com acidentes naturais, tais como córregos, espigões, grotas. Imóveis sempre confrontam com outros imóveis, mesmo quando são imóveis públicos que não necessariamente encontram-se matriculados, como é o caso das vias públicas que podem, ou não, estar publicizadas no registro imobiliário.
“Imóveis sempre confrontam com outros imóveis, mesmo quando são imóveis públicos que não necessariamente encontram-se matriculados, como é o caso das vias públicas que podem, ou não, estar publicizadas no registro imobiliário”
Isso fica evidente quando se entende a lógica do regime de propriedade estabelecido pelo Estado, especialmente o Estado Moderno, que abomina a existência de bens sem titular. Toda a superfície de um Estado moderno é composta por imóveis, sem exceção. Os imóveis podem ser particulares ou públicos de uso comum, de uso especial ou dominicais. Nos raros casos em que um imóvel “não é de ninguém”, ele é público, na modalidade de terra devoluta. Imóveis podem ser fonte de problemas para o Poder Público, quando utilizados para a prática de crimes ambientais, ao sofrer parcelamento irregular do solo ou serem utilizados para plantação de culturas voltadas à produção de entorpecentes. Imóveis são bens tributáveis e também podem ser objeto de políticas e ações públicas. A responsabilidade criminal, o pagamento dos impostos, obrigações de fazer ou não fazer, desapropriações, servidões, dentre outras, necessitam, em regra, que exista um titular para o imóvel e que ele seja facilmente identificável. Em razão disso, imóveis sem titular (res derelicta), são raros, excepcionais e transitórios. E os córregos, riachos e rios não estão dentre essas exceções.
Tratando-se de bens imóveis, o que limita a sua posse ou propriedade é o exercício ou titularidade desses direitos por outrem. Assim, o direito de propriedade se estende até encontrar outro direito de propriedade que o contraponha, ou seja, que se defina como a barreira jurídica para a sua extensão.
Então, quando dois imóveis estão separados por um curso d’água, até onde vai cada imóvel? Até a margem? Até algum ponto no rio?
Parece uma questão complexa, que poderia ser resolvida apenas com a lógica acima descrita, porém não há necessidade, dada a clareza trazida pela lei. Mas para chegarmos e ela precisamos entender alguns conceitos e fazer uma advertência.
LEGISLAÇÃO APLICÁVEL
Inicialmente os temas relativos ao uso da água foram disciplinados no Decreto 24.643 de 1934 (Código de Águas), que dividiu a águas em públicas de uso comum, públicas de uso dominical, comuns e particulares. Essa divisão gerava reflexos tanto no direito de utilização da água quanto na titularidade das margens e do álveo (leito).

A Constituição Federal de 1988 tratou o meio ambiente, no qual as águas estão inseridas, como bem público, não reproduzindo a divisão feita em 1934, entre águas públicas, comuns e particulares. O predomínio do interesse público sobre a utilização da água fica ainda mais evidente na Lei 9.433/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos.
Dois aspectos precisam ser pontuados, o primeiro é uma ampla modificação na forma de utilização dos recursos hídricos, o que não é objeto deste estudo. O segundo é que não houve expressa revogação do Código de Águas, de modo que, naquilo em que ele conflita com a Constituição Federal, não houve recepção, permanecendo válido o restante. Neste ponto cabe ressaltar que a não recepção da divisão das águas entre públicas, comuns e particulares restringe-se à questão da sua utilização, não titularidade. No entanto, ela continua válida e útil para identificar a quem pertencem as margens e leitos dos corpos d’água.

Outra não poderia ser a interpretação, pois do contrário, juntamente com as águas todos os álveos também teriam que se tornar públicos, o que representaria a desapropriação de milhares de trechos sem a prévia indenização, contrariamente ao que dispõe o art. 5, XXIV da Constituição Federal.
Dessa forma, a conclusão que se coaduna com a interpretação constitucional é no sentido de apenas as águas terem se tornado públicas, mantendo-se o caráter público ou privado que os álveos já ostentavam.

O PRIMEIRO CONCEITO: NAVEGABILIDADE
O Código de Águas utiliza, em diversos artigos, o termo “navegável”, porém sem conceituá-lo. O termo, em si, é de fácil compreensão. Navegável é o corpo d’água que comporta o trânsito de uma embarcação, ainda que de pequeno porte, sem obstáculos. Ou seja, se um córrego ou riacho é muito raso ou muito estreito, não é navegável. É importante ressaltar que essa característica deve ser considerada pela média do corpo d’água, pois um rio pode comportar uma embarcação no período de cheias ou após uma chuva intensa, mas isso não faz dele navegável, pois não o é no resto do ano. A navegabilidade deve ser uma característica permanente. De mesmo modo, um rio navegável não deixa de sê-lo ao enfrentar uma estiagem prolongada e excepcional.
ÁGUAS PÚBLICAS, COMUNS E PARTICULARES
O Código divide as águas em públicas de uso comum, públicas de uso dominical, comuns e particulares. Essa divisão, embora não tenha sido recepcionada pela CF/88 com relação ao poder de uso dos recursos hídricos, como dito acima, tem reflexos importantes no direito de propriedade dos imóveis banhados por estas águas. Para explicá-lo usarei uma ordem diversa da que é nele trazido.
Águas Particulares (art. 8)
“ Art. 8º São particulares as nascentes e todas as águas situadas em terrenos que também o sejam, quando as mesmas não estiverem classificadas entre as águas comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns.”
Para que um corpo d’água seja considerado particular ele deve obedecer a 3 requisitos:
- não ser navegável;
- não ter origem em outro corpo d’água navegável
- estar localizado dentro de uma área particular
Entram nessa categoria, então, os pequenos riachos que nascem dentro da propriedade, ou, que a cortem, mesmo que adiante se tornem navegáveis ou sejam afluentes de uma corrente navegável.
Águas Públicas Dominicais (art. 6º)
“Art. 6º São públicas dominicais todas as águas situadas em terrenos que também o sejam, quando as mesmas não forem do domínio público de uso comum, ou não forem comuns.”
Possui as mesmas características das águas particulares, porém situados dentro de uma área pública dominical.
Águas Públicas Comuns (art. 2º)
“Art. 2º São águas públicas de uso comum:
a) os mares territoriais, nos mesmos incluídos os golfos, bahias, enseadas e portos;
b) as correntes, canais, lagos e lagoas navegáveis ou flutuáveis;
c) as correntes de que se façam estas águas;
d) as fontes e reservatórios públicos;
e) as nascentes quando forem de tal modo consideráveis que, por si só, constituam o “caput fluminis”;
f) os braços de quaisquer correntes públicas, desde que os mesmos influam na navegabilidade ou flutuabilidade.
§ 1º Uma corrente navegável ou flutuável se diz feita por outra quando se torna navegável logo depois de receber essa outra.
§ 2º As correntes de que se fazem os lagos e lagoas navegáveis ou flutuáveis serão determinadas pelo exame de peritos.
§ 3º Não se compreendem na letra b) dêste artigo, os lagos ou lagoas situadas em um só prédio particular e por ele exclusivamente cercado, quando não sejam alimentados por alguma corrente de uso comum.”
Basicamente, são públicas de uso comum todas as águas navegáveis, sejam elas os mares, lagos, lagoas, canais, rios ou riachos.
Águas Comuns (art. 7)
“ Art. 7º São comuns as correntes não navegáveis ou flutuáveis e de que essas não se façam.”
Para os fins deste artigo, esta é a classificação mais importante. O Decreto se utiliza da técnica de descrever por exclusão as águas particulares (art. 8º), no entanto, entendo que o que se define pela exclusão não são as águas particulares, mas as comuns. Ou seja, são comuns as águas que, não sendo navegáveis, também não são nem particulares nem públicas dominicais.
Este é exatamente o tipo de situação que temos quando um corpo d’água é usado como divisa entre propriedades rurais. As águas que por ele passam são comuns a todos os proprietários por ele banhados.
ÁLVEO OU LEITO
Álveo é o leito do rio, córrego, riacho ou lago. É a superfície por onde as águas normalmente correm, sem transbordar. Essa definição encontra-se no art. 9º e é importante para compreender a extensão do que dispõe o artigo seguinte, um dos mais importantes para o presente estudo.
“Art. 9º Álveo é a superfície que as águas cobrem sem transbordar para o sólo natural e ordinariamente enxuto.”
Conforme já ficou claro anteriormente, com a mudança de paradigma na CF88, todas as águas passaram a ser públicas. Os álveos, no entanto, permaneceram inalterados, remanescendo públicos ou particulares conforme a natureza que já ostentavam.
TERRENOS RESERVADOS E TERRENOS DE MARINHA
Além do álveo, o Poder Público também é titular de faixas especiais, localizadas à beira-mar (Terrenos de Marinha) ou às margens de corpos d’água navegáveis (Terrenos Reservados). Os Terrenos de Marinha possuem regulamentação própria e não serão abordados no presente estudo.
Os Terrenos Reservados, portanto, são faixas de terras, com 15 metros de largura, contados a partir do ponto médio das enchentes ordinárias de cada margem, que pertencem à União, quando o corpo d’água servir como divisa com nação estrangeira ou estiver dentro de uma faixa de 100 km desta divisa, ou se o rio for divisa entre dois ou mais Estados-Membros e ao Estado-Membro nos demais casos.
Essa medida de 15 metros têm origem histórica, desde o Direito Português, sendo um arredondamento da medida de 7 braças (aproximadamente 15,4 metros) usadas desde tempos imemoriais e repetidas, como exemplo, no art. 39 da Lei 1.507 de 1867.

Existe discussão se o novo tratamento constitucional manteve os Terrenos Reservados dos Estados e dos Municípios. O Código de Águas trazia os Terrenos Reservados municipais em seu art. 29, III, porém, salvo melhor juízo, essa divisão tripartite é incompatível com o tratamento trazido pela nova ordem constitucional, confirmada pela ausência de artigo específico no capítulo IV da CF elecando os bens municipais, desta forma, parecem-nos que não há mais Terrenos Reservados Municipais.
Questão mais complexa diz respeito aos Terrenos Reservados Estaduais. De fato, os terrenos marginais são mencionados na Constituição, unicamente, no art. 20, III, que lista os bens da União. Uma conclusão a que se poderia chegar é que só remanescem os Terrenos Reservados federais, tendo desaparecido todos os demais. O problema é que essa interpretação leva à conclusão que uma significativa parcela de áreas públicas passou aos particulares, o que significa clara violação ao Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público. Ademais, se entendemos que com a mudança da titularidade das águas não houve desapropriação dos leitos, igualmente não podemos admitir que, em sentido inverso, os leitos públicos tenham se tornado particulares. Outro ponto a se considerar é que o art. 26, que traz os bens dos Estados utiliza-se da expressão “incluem-se”, ou seja, é um rol exemplificativo. Assim, a conclusão a que chego é que todos os Terrenos Reservados são dos Estados, com fulcro no Código de Águas, à exceção daqueles indicados no art. 20, III, que são da União.
Existe, ainda o entendimento no sentido de que os Terrenos Reservados são mera servidão, no entanto, temos que a redação do art. 11 do Código de Águas é bastante clara no sentido de que se trata de direito de propriedade e não de servidão.
DIVISAS
Chegamos, então, à questão principal do estudo, que é definir como se dão as divisas entre imóveis que se confrontam por meio de rios, córregos, riachos ou lagoas, ou seja, divisas molhadas.
Sendo o rio navegável, os limites do imóvel não chegarão até a margem do rio, terminando aquele no limite do Terreno Reservado, que será da União, ou do Estado-Membro, conforme já explicado acima. Essa faixa de Terreno Reservado, nos termos do art. 14 do Código de Águas, é de 15 metros contado do ponto médio das enchentes ordinárias. Assim, verifica-se que essa medida não é contada da margem, mas do ponto médio das enchentes ordinárias.
“Art. 14. Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a distância de 15 metros para a parte de terra, contados desde o ponto médio das enchentes ordinárias.”
A aferição de onde fica esse ponto médio foge à competência do RI, e, sendo um critério técnico legal, igualmente não cabe a mera declaração por parte do proprietário do imóvel retificando, ainda que com respaldo do profissional que elaborou os trabalhos técnicos. Assim, é imprescindível a anuência do Poder Público, titular do Terreno Reservado, que possui corpo técnico apto a verificar se os trabalhos apresentados apontam as medidas corretas para o Terreno Reservado.
Por outro lado, tratando-se de rio não navegável, todo o álveo será particular e a divisa entre os dois imóveis será a linha média do rio ou córrego, como dispõe o parágrafo primeiro do art. 10:
“Art. 10. O álveo será público de uso comum, ou dominical, conforme a propriedade das respectivas águas; e será particular no caso das águas comuns ou das águas particulares.
§ 1º Na hipótese de uma corrente que sirva de divisa entre diversos proprietários, o direito de cada um deles se estende a todo o comprimento de sua testada até a linha que divide o álveo ao meio.
§ 2º Na hipótese de um lago ou lagoa nas mesmas condições, o direito de cada proprietário estender-se-á desde a margem até a linha ou ponto mais conveniente para divisão equitativa das águas, na extensão da testada de cada quinhoeiro, linha ou ponto locados, de preferência, segundo o próprio uso dos ribeirinhos.”

Neste ponto cabe a reflexão se cabe ao RI recusar trabalhos técnicos que coloquem a divisa na margem e não na linha média do córrego.
É meu entendimento que não, por vários motivos. O primeiro deles é que, em geral, rios e córregos não navegáveis costumam ser bastante estreitos e as imagens de satélite podem não expressar, com exatidão, os pontos georreferenciados. Também é necessário considerar que córregos naturalmente mudam seu traçado ao longo do tempo. Basta comparar imagens de satélite tiradas em anos diferentes para verificar que isso ocorre com certa frequência, de modo que essas divisas são, de certo modo, fluidas. Por fim, cabe lembrar que, na hipótese do rio ou córrego secar de modo permanente, a legislação possui instrumento para aferir a quem pertence cada trecho, conforme disciplina o art. 1.252 do Código Civil (álveo abandonado).
SERVIDÃO DE TRÂNSITO
Importante lembrar que, mesmo nos rios não navegáveis, em que o álveo é privado e não há Terreno Reservado, a lei criou servidão de trânsito em favor do poder público, sobre uma faixa de 10m, que independe de qualquer registro.
“Art. 12. Sobre as margens das correntes a que se refere a última parte do nº 2 do artigo anterior, fica somente, e dentro apenas da faixa de 10 metros, estabelecida uma servidão de trânsito para os agentes da administração pública, quando em execução de serviço.”
CONCLUSÃO
Ao concluirmos a análise da legislação pertinente à disciplina das águas e dos álveos verifica-se que, independentemente de a quem pertença o álveo, é incorreto não se exigir a anuência de seu titular, quando da retificação de área de imóvel que faça confrontação com rio ou córrego. Esta anuência será dada pelo Poder Público quando o rio for navegável e pelo proprietário do imóvel da outra margem quando não o for.
Outra importante conclusão é quanto à contiguidade dos imóveis. Imóveis particulares separados por rios navegáveis não são contíguos, pois entre eles há um imóvel público, ainda que não matriculado, composto da somatória do álveo, área entre a margem e o ponto médio das enchentes ordinárias e o Terreno Reservado. Não sendo contíguos, esses imóveis não podem ser unificados em uma única matrícula, pois, como dito, entre eles há um imóvel público que os separa. O imóvel público não é um elemento de tapagem, um elemento de demarcação de divisas, como se fosse um muro; trata-se de imóvel cabente a outro titular, cuja linha divisória deve ser respeitada e a anuência expressa ou tácita, no procedimento de retificação imobiliária, obtida.
Por outro lado, sendo o rio não navegável, ainda que as águas e seu uso sejam públicos, o álveo é particular, de modo que é plenamente possível a unificação de dois ou mais imóveis nas margens opostas deste rio ou córrego, desde que de mesma titularidade.
Agradecimentos especiais à minha querida amiga a Registradora e Professora de Direito Registral Daniela Rosário Rodrigues pela revisão do texto e valiosíssimos acréscimos ao texto original.
As artes usadas neste artigo são da talentosa Mariana Gavazzi a quem devo outro agradecimento pela paciência e persistência para decifrar meus rascunhos hieroglíficos.