CÉDULAS DE CRÉDITO APRESENTADAS EM PDF ASSINADO DIGITALMENTE. SÃO VÁLIDAS?

Recentemente começaram a aparecer no e-protocolo, cédulas, dos mais variados tipos, emitidas em PDF com a assinatura digital do emitente. Estou ciente de que alguns cartórios as registram, sob o argumento de que a lei autoriza essa emissão eletrônica. Respeito este entendimento, mas dele não comungo e explicarei o motivo.

O que se costuma verificar, nestes casos, é que o arquivo de texto que, normalmente é usado para a impressão da cédula, ou seja, sua minuta, é convertido em PDF e assinado digitalmente pelo emitente.

A Lei 13.986/20 (Lei do Agro) alterou as diversas leis que regem as cédulas de crédito adicionando disposições tais como a abaixo:

“Art 14. A cédula rural pignoratícia conterá os seguintes requisitos, lançados no contexto:

IX – assinatura do emitente ou de representante com poderes especiais, admitida a assinatura sob a forma eletrônica, desde que garantida a identificação inequívoca de seu signatário.“(Nova redação ao Art. 14 do DL 167/67)

No entanto, apesar da clara atecnia da mencionada lei, entendo que estas alterações não são suficientes a permitir a emissão de cédulas da forma como acima descrito, mesmo com assinatura eletrônica em formato ICP-Brasil. 

Cédulas são títulos de crédito, portanto, sujeitos aos princípios do Direito Cambial, dentre os quais destaco o Princípio da Cartularidade, que, nas palavras de Fábio Ulhôa Coelho, é o princípio “segundo o qual o exercício dos direitos representados por um título de crédito pressupõe a sua posse. Somente quem exibe a cártula (isto é, o papel em que se lançaram os atos cambiários constitutivos de crédito) pode pretender a satisfação de uma pretensão relativamente ao direito documentado pelo título. Quem não se encontra com o título em sua posse, não se presume credor.”

Neste mesmo sentido, Fran Martins leciona que “para ter um título de crédito, é indispensável que exista um documento, isto é, um escrito em algo material, palpável, corpóreo.”

Isto porque a cartularidade dos títulos de crédito pressupõem a existência de um, e apenas um, título original, que é aquele que fica na posse do credor e pode ser usado para executar o devedor em caso de inadimplemento. A existência de um arquivo digital, ainda que assinado digitalmente em conformidade com as normas da ICP-Brasil, é incompatível com essa característica dos títulos de crédito, posto que desse arquivo podem ser criadas infinitas cópias, sendo impossível distinguir dentre elas qual a original.

“A existência de um arquivo digital, ainda que assinado digitalmente em conformidade com as normas da ICP-Brasil, é incompatível com essa característica dos títulos de crédito, posto que desse arquivo podem ser criadas infinitas cópias, sendo impossível distinguir dentre elas qual a original.”

A cartularidade é de extrema importância, especialmente se houver necessidade de execução por inadimplência, de modo que a emissão de uma cédula em descordo com esse princípio joga em desfavor do próprio credor. Neste sentido:

“a exigência da via original do título executivo extrajudicial como requisito à propositura do processo de execução visa atender duas finalidades: primeiro, certifica a autenticidade do título, e, segundo, afasta a possibilidade de ter a cártula circulado.” (REsp 337.822/RJ

Tampouco é possível admitir-se o argumento de que os Registros de Imóveis resistem à mudança, impedem o uso da tecnologia ou algo do tipo, pois há outras formas de emissão ou envio digital de cédulas de crédito para o registro no cartório competente.

A possibilidade de emissão de cédulas em formato escritural, inspiradas pela emissão escritural de duplicatas, surge em 2004, com a Lei 10.931/04, que, dentre outras coisas, criou a Cédula de Crédito Bancário (CCB) e a Cédula de Crédito Imobiliário (CCI), permitindo-lhes a criação tanto na forma cartular, quanto escritural. Posteriormente o modelo de emissão de cédulas em formato escritural foi estendido também para as cédulas rurais e as cédulas de produto rural, por alteração, respectivamente, no DL 167/67 e na Lei 8929/94.

A emissão de uma cédula em formato escritural não se confunde com a mera emissão de um PDF assinado eletronicamente, ao contrário, deve seguir um procedimento próprio, estabelecido na Lei e demais instrumentos infralegais.  

Para a cédula de crédito bancário, por exemplo, a Lei 10.931/04, em seu artigo 27-A, faculta a emissão de cédula em formato eletrônico, ou escritural, especificando o modo pelo qual deve ser produzida:

“Art. 27-A. A Cédula de Crédito Bancário poderá ser emitida sob a forma escritural, por meio do lançamento em sistema eletrônico de escrituração.

Parágrafo único. O sistema eletrônico de escrituração de que trata o caput deste artigo será mantido em instituição financeira ou em outra entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de escrituração eletrônica.     

Art. 27-B. Compete ao Banco Central do Brasil:  

I – estabelecer as condições para o exercício da atividade de escrituração eletrônica de que trata o parágrafo único do art. 27-A desta Lei; e       

II – autorizar e supervisionar o exercício da atividade prevista no inciso I do caput deste artigo.    

§ 1º A autorização de que trata o parágrafo único do art. 27-A desta Lei poderá, a critério do Banco Central do Brasil, ser concedida por segmento, por espécie ou por grupos de entidades que atendam a critérios específicos, dispensada a concessão de autorização individualizada.    

§ 2º As infrações às normas legais e regulamentares que regem a atividade de escrituração eletrônica sujeitam a entidade responsável pelo sistema eletrônico de escrituração, os seus administradores e os membros de seus órgãos estatutários ou contratuais ao disposto na Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017.       

Art. 27-C. A entidade responsável pelo sistema eletrônico de escrituração de que trata o art. 27-A desta Lei expedirá, mediante solicitação de seu titular, certidão de inteiro teor do título, a qual corresponderá a título executivo extrajudicial.      

Parágrafo único. A certidão de que trata o caput deste artigo poderá ser emitida na forma eletrônica, observados os requisitos de segurança que garantam a autenticidade e a integridade do documento.     

Art. 27-D. O Banco Central do Brasil poderá regulamentar a emissão, a assinatura, a negociação e a liquidação da Cédula de Crédito Bancário emitida sob a forma escritural.”

É de fácil percepção que a emissão de cédula escritural depende de seu registro em um sistema próprio, em ambiente regulado pelo BACEN, e que será a certidão de inteiro teor, emitida pelo responsável pelo sistema eletrônico de escrituração, que será o documento a ser apresentado no Registro de Imóveis para fins de registro das garantias, como se verifica pela leitura do parágrafo segundo do art. 6º da Circular BACEN nº 4.060/20, que regulamentou o mencionado art. 27:

“Art. 6º  As instituições financeiras responsáveis pelos sistemas eletrônicos de escrituração de que trata o art. 3º deverão emitir, a pedido do devedor ou de interessado legalmente qualificado, certidão de inteiro teor da Cédula de Crédito Bancário e da Cédula de Crédito Rural, no prazo de até um dia útil, a contar da solicitação.

§ 1º  A emissão da certidão de inteiro teor poderá ocorrer de forma eletrônica, observado o disposto no art. 5º, parágrafo único, para fins de assinatura eletrônica da certidão.

§ 2º  A certidão de inteiro teor deverá conter todas as informações que permitam a adoção das providências de registro de garantias perante entidades registradoras, depositários centrais, Registro de Imóveis, Registro de Títulos e Documentos ou outros tipos de Registros Públicos.”

Assim, ao contrário de uma cédula física (cartular), o que é apresentado a registro é uma certidão e não a própria cédula, que remanesce em poder e sob a guarda da instituição responsável pelo registro, conforme estabelecido pelo BACEN.

Há, ainda, uma outra forma de envio eletrônico de cédulas aos Registros de Imóveis, na forma de extrato, enviado diretamente pelo credor.

A possibilidade de registro de títulos encaminhados por extrato encontra-se amparada no art. 6º da Lei 14.382/22 (Lei do SERP):

“Art. 6º Os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º desta Lei.”

Especificamente em relação às cédulas, o ONR já editou normativa contendo os parâmetros para a emissão do extrato, em formato XML, o qual foi aprovado pela Corregedoria do CNJ, conforme ITN/ONR N. 001-18/11/2021, publicado no Diário Oficial em 24/02/2022

De modo análogo à emissão escritural, nesta modalidade igualmente não é enviada a cédula ao cartório, mas sim seu resumo eletrônico, o extrato, cabendo à instituição financeira a guarda e conservação da via original da cédula.

Por óbvio que, atualmente, já existe tecnologia que possibilite a criação de uma cédula totalmente digital que permita a sua compatibilização com o princípio da cartularidade, permitindo a existência de apenas uma via original, como por exemplo, com o emprego da tecnologia NFT. No entanto, isso demandaria alteração legislativa e adequação dos meios eletrônicos de registro, remanescendo, por ora, no campo das possibilidades.

De qualquer forma, atualmente já existem alternativas à emissão física das cédulas, de modo que aceitar um PDF assinado digitalmente como se título válido fosse, me parece não só desnecessário, mas contrário à legislação.

Conclusão: A mera assinatura eletrônica em um arquivo PDF não o constitui em uma cédula, está em desacordo com a lei e não permite seu ingresso no fólio real. O RI não pode interromper o avanço trazido pela tecnologia, mas estas transformações, por sua vez, não podem desvirtuar os institutos, privando-os de suas principais características, princípios e institutos que os diferenciam dos demais negócios jurídicos, especialmente quando recordamos que a lei faculta outras opções de formação eletrônica aos títulos de crédito, que alcançam os objetivos de celeridade e eficácia buscados pelas partes.

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